Quase nu.Completamente despido, então de preconceitos haveria pouco a tapar. Qualquer mortalha das mais reles seria suficiente para que se escondesse a perene beleza corporal tão real mas tão simbolizadora da desgraça humana. Bastaria um pano cor da paz, certamente branco não seria pois de tão pouco imaculado que é sujaria, faria nódoa, então nele, quase nu. Completamente despido. Os seus pés nunca dantes tão terra a terra sentiram a gélida manhã como daquela vez. Sentia-o com um sorriso quase perverso, que bem que lhe sabia tanta dor matinal, e aquela brisa acolhedora da manhã a aconchegar o frio do inverno bem juntinho dele a prometer uma simbiose como nunca dantes experimentara com a natureza. Que bom. Era capaz de dizer que nunca se sentira tão vivo nesta vida, mesmo estando tão perto da outra. Outrora era homem para gritar ao vento que mesmo sem água venceria o fogo antes de alimentar a terra que o vira crescer. Mas agora, quase nu, completamente despido, envolto em trapos, sentia-se tão ridiculo como nunca. Sentia que quem o vencia de vez era a água, o vento e quem sabe o fogo. Mas afinal que mundo seria este em que até os elementos conspiravam contra um homem, quase nu? Mas não é que ele gostava! Era um prazer que tomava como imediato. Tanta dor levava-o suavemente para um recanto tão sublime. Era tão bom. Que paz de alma ( mas que sofrimento eterno ). Era tão bom lá permanecer para sempre, mas tão efémero. Não obstante, valia tanto poder caminhar lado a lado daqueles anjos de asas negras, dois, um de cada lado. Só mais uma vez, era só esse o seu desejo. Último. Só mais uma vez e que fosse de vez mesmo. Tantos sonhos tivera em que vira o corvo na cruz, em que vira os anjos da morte. Mas porque raio nunca o levaram mesmo? Sempre que os viu com olhos de ver nunca o levaram. Então porque teimavam em aparecer também nos sonhos? Já não bastava o tormento do corpo passaria também pelo tormento d’alma. Nem em si mesmo se puderia refugiar já no medo do seu retorno. E ingenuamente procurava uma manta para refugio do corpo. Pobre homem quase nu, completamente despido. Soubera ele que morrera da alma anos antes e não sentiria a aflição do corpo. Mas o parvo não se deixava cair. Seria do medo? Ou até do frio. É que gostava mesmo. Dava-se por vencido mas não se sentia derrotado. Preparava a vingança contra a vida. Se não lhe trazia felicidade então acabaria com ela de vez. Pobre homem, nem disso era capaz. Tremia que nem magro ramo ao vento. Tanto medo de não saber o que fazer. Mas tanto gosto na podridão. Que bem que lhe sabia. Lembro-me de vê-lo implorar que cantassem os cisnes ( e não é que não existiam! ), talvez ele os visse, e via de certeza. Nunca tinha dantes visto tanta convicção num grito só, tamanha fúria condensada num só ser, o libertar de uma vida e o pregoar de um anúncio de morte, se por breves instantes relatasse o meu mundo diria que estava num lago dos mais belos do céu entoado de leves melodias dos cisnes, mas ora não há disparate mais pegado! Estava um morto quase vivo,quase nu. Completamente despido a diambolar na mais bela das serenatas, talvez a da vida, ao som dos cisnes num mar de anjos negros, mas que beleza indiscritível e só um homem quase nu, completamente despido é que o vê. Tanta sorte tem aquele moribundo. Para mim não passava de pura demência, mas juro que invejava aquele homem. Invejava a abstracção total dos sentidos, invejava o mundo onde estava escondido e que só ele via, por assim dizer, invejava a morte que ele desejava, ( que macabro,irra! ), mas morrer não era nada que eu quisesse. Pelo menos fisicamente. Não, não queria morrer mesmo é certo. Este mundo tem muito que não quero abandonar, mas é tão tentador querer arranjar nova morada eterna por aquilo que odiamos na terra em vez de desejar ficar mais um pouco por aquilo que cá nos prende.
Mas ele, quase nu, existia no meio de nós, mas era no mundo dele.
Iowa